Em
nossos tempos, o pensamento, confortado com desconcertantes e inauditos
cenários, vê-se instigado a estabelecer conexões capazes de produzir um
novo solo para a reflexão filosófica a criar redes conceituais
suficientemente potentes para acolher a complexidade específica à
situação atual.
Conectando
diversos tempos, atravessando diferentes campos do pensamento,
configurando novos objetos de investigação, procurando, enfim,
ultrapassar os limites do até então pensável, nós filósofos temos o
dever de pensar o impensável, de não nos limitarmos pelas dificuldades e
pela repressão dos ditos moralistas.
Temos
que identificar falsos problemas, questões mal colocadas e apostar na
perda de parâmetros como um verdadeiro convite à alegria de sua própria
reinvenção. Temos que “desmascarar” todos os preconceitos e ilusões do
gênero humano, ousar olhar, sem temor, aquilo que se esconde por trás de
valores universalmente aceitos, por trás das grandes e pequenas
verdades melhor assentadas, por trás dos ideais que serviram de base
para a civilização e nortearam o rumo dos acontecimentos históricos. Não
devemos nos prender somente ao que já foi pensado, muito pelo
contrário. Concordaremos, discordaremos e/ou acrescentaremos algo no
pensamento dos filósofos anteriores.
Em
“Crepúsculo dos Ídolos”, o autor Friedrich Wilhelm Nietzsche, descreve
seu livro como “uma grande declaração de guerra”. E de certa forma esta é
uma “guerra” contra a moral, contra o pensamento religioso estagnado no
nada, de forma que choca até hoje quem o lê.
Colocando
os juízos de valor sobre a vida como imbecilidades, o autor nos
demonstra que tais valores nem sequer existem. Esses valores tratados
pela religião como um todo, são apenas sintomas da doença da ilusão da
realidade. Pois o real valor da vida não pode ser avaliado por meros
mortais. Sendo seres viventes, sendo parte da vida, não podemos
julgá-la. Não somos juízes do além e muito menos os mortos julgam alguma
coisa.
Entra
aqui o valoroso papel do filósofo. Ele se encontra arrebatado pelo
sofrimento de estar vivo e compreender a decadência dos que julgam a
vida. Mas é por isso, pelo fato de ser filósofo e compreender este além
da vida, que o filósofo não se cala, sente a angústia de compartilhar o
que raramente alguém poderia pensar.
Um
pensamento interessante em “Crepúsculo dos Ídolos” é a associação que
Nietzsche fez entre a felicidade e os instintos em uma vida em ascensão. Ele
trata a felicidade como sendo igual aos instintos, como dependente
direta dos instintos humanos. E isso é radicalmente contraposto ao
pensamento religioso, que impõe que os instintos precisam ser
combatidos, limitados, podados. Se os instintos são essenciais à vida,
então fica claro que o pensamento religioso é algo contranatureza
humana. A religião ao pregar a vida eterna feliz, acaba pregando a vida
presente mortificada pelo marasmo do controle da vivência natural de
Ser. Desta mesma forma acontece com os sentidos. Para não sofrer, o
pensamento religioso combate as paixões suprimindo (Nietzsche usa os
termos “castrando” e “extirpando”) os sentidos de forma antinatural, já
que os sentidos são essenciais à vida.
E
como tratar o pensamento religioso acerca das paixões? A igreja
primitiva lutou contra os “Inteligentes” em favor dos “pobres de
Espírito”: como seria possível esperar dela uma guerra inteligente
contra a paixão? Então a “espiritualização da paixão” não cabe de forma
alguma no mesmo patamar que a religião. Ao invés de espiritualizar a
paixão, os religiosos preferem suprimi-la. Pois as paixões causam
alegrias, mas principalmente causam tormentos e sofrimentos. O papel do
pensamento religioso aqui é atacar o sofrimento em sua raiz para evitar
que o ser humano sofra. Mas, sendo o sofrimento algo natural à vida, o
que fica claro é que atacar o sofrimento na raiz é o mesmo que atacar a
vida na raiz. Então “a práxis da igreja é inimiga da vida...”.
Levando
mais em conta agora o cristianismo, percebemos ao analisarmos o
“Crepúsculo dos Ídolos”, que a confiança em Deus existe porque o
sentimento de plenitude e de força entrega o indivíduo à quietude, à
obediência, à servidão e todos esses adjetivos de decadência. Possui uma
moral de comando, na qual seu servo não pode errar por medo de um além
mau, por medo de um castigo eterno. O pensamento religioso trata-se de
uma libertação escravizada pela razão (teologia), que só faz apertar-lhe
os grilhões, enclaustrando a vida humana digna e livre.
Sobre
isso, meus senhores, não vale á pena criticarmos mais gastando tempo e
tinta, pois para o decadente cristão seu Deus e sua moral não podem ser
criticados, são verdades desde sempre estabelecidas. E já que estão
satisfeitos com sua forma subserviente de vida, só o que tenho a fazer é
deixar noticiado esta forma sub-humana de viver.
Fonte: Dark Autopsy
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